Na porta de entrada dos 6,7 milhões de brasileiros que sonham, em 2017, com o acesso à educação superior no país, há um “leão de chácara”: a prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
A maior dificuldade para a realização da prova não está na aplicação das regras gramaticais que, com maior ou menor êxito, o nosso tradicional sistema educacional tenta dar conta. O problema é o pânico causado pela folha em branco, que dispara o gatilho para perguntas sobre como desenvolver o tema proposto, como escrever sobre um assunto pouco conhecido e quais serão, afinal, os critérios de avaliação.
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo Enem, organiza a correção da prova de redação a partir de uma matriz composta de cinco competências. O Inep solicita, tão somente, que os candidatos apresentem suas ideias de modo a contemplar tema + tese + argumentos + proposta de intervenção utilizando, para isso, um texto dissertativo-argumentativo a partir de uma situação-problema (política, social ou cultural). Difícil? Para um estudante concluinte do Ensino Médio, não deveria ser. As garras do “leão de chácara”, por assim dizer, se fazem visíveis em função de o Inep não priorizar o domínio formal da Língua Portuguesa na correção. Das cinco competências avaliadas, apenas uma solicita o conhecimento das regras gramaticais, tal qual estamos acostumados. As demais, fazem parte do grupo das chamadas competências essenciais para o século XXI.
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Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa.
O que se pretende avaliar: palavras escritas com a grafia correta, concordância verbal e pontuação corretas e ausência de vícios da linguagem falada. A prova definitiva de que este não é o aspecto central da correção das provas – isso não quer dizer que não seja importante – é que o Inep já deu a tão sonhada nota máxima de 1.000 pontos para redações que apresentavam desvios pontuais de concordância e regência.
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Compreender a proposta da redação e aplicar conceitos de várias áreas do conhecimento para desenvolver o tema.
O que se pretende avaliar: compreensão do tema proposto e capacidade de defender ideias ao longo do texto. Não é raro que os candidatos fujam, parcialmente ou por completo, do tema proposto. Muitas redações são confusas e, antes de representarem uma dificuldade com a norma, revelam propriamente a desarticulação das ideias do candidato.
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Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.
O que se pretende avaliar: organização das ideias e se estão apresentadas em uma sequência lógica, fazendo sentido entre as partes do texto. Este é um ponto em que não só a falta de prática na produção textual, para além dos posts em redes sociais, como também o rarefeito hábito de leitura do brasileiro entregam a sua conta.
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Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação.
O que se pretende avaliar: a relação entre a organização dos parágrafos e a coerência de ideias apresentadas no texto. Quanto à argumentação, muitos candidatos escorregam ao afirmar, categoricamente, ideias que são discutíveis, enfraquecendo a qualidade do texto.
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Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.
O que se pretende avaliar: a capacidade de apresentar uma proposta. Aliás, foi esse o polêmico item que gerou a discussão sobre a correção da prova. O Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre a questão, garantindo a liberdade de cada cidadão expressar sua opinião e sublinhando que a Constituição da República impõe o pleno respeito aos direitos humanos. Em termos práticos, os candidatos são livres para expressar opinião, mas devem estar atentos às consequências dos seus atos.
A prova de redação é de tal forma motivo de preocupação para os candidatos, que o Inep dispõe de uma cartilha apresentando a matriz de competências, com exemplos comentados de provas nota 1.000. É uma excelente contribuição para o segundo maior processo de admissão em universidades do mundo. Só perde para a China. Considerando a ampla divulgação dos critérios de correção e, ainda, o apoio de professores nos cursos preparatórios, existe mesmo razão para tanto pânico?
Sim! Os alunos estão cobertos de razão. Via de regra, todos os anos investidos na Educação Básica não são suficientes para prepará-los para estas cinco competências exigidas pela prova de redação do Enem. O Ministério da Educação, por sua vez, também está coberto de razão. A equipe técnica do Inep sabe que escrever bem é uma competência que não pode ser confundida com a mera aplicação de regras gramaticais. O que está em jogo, aqui, é a capacidade de pensar e expressar adequadamente ideias por meio de argumentos válidos e coerentes.
O temor dos estudantes e as exigências do MEC não são outra coisa senão a materialização do hiato entre o que se aprende na escola e o mundo real. A maioria dos alunos não percebe que, uma vez apresentado o tema, deverá lançar mão de “pensamento crítico” para depreender os aspectos que vão dialogar com a sua argumentação. Muitos não sabem que, por não existir uma resposta certa para um tema de redação, devem aplicar técnicas de “como resolver um problema complexo”, considerando diferentes atores e cenários para chegar a soluções possíveis. Boa parte dos alunos não é estimulada a expressar sua visão de mundo com “criatividade”, considerando esta uma faculdade para poucos. Muitos deles não compreendem que escrever exige o manejo de atributos mínimos para a comunicação, os chamados “5 C’s”: coerência, concisão, clareza, correção e cordialidade. Este último, aliás, colabora fortemente para que não se falte com o respeito à diversidade humana.
É fato: o mundo mudou e está mudando cada vez mais de forma acelerada. Não é possível adivinhar qual tendência de informática vai vingar; qual será a configuração geopolítica do mundo, após os movimentos migratórios recentes; os efeitos do padrão atual de consumo sobre a sustentabilidade do planeta; os empregos que vão surgir em razão de mudanças tecnológicas radicais. Da mesma maneira, não era possível antever que o tema da prova de redação do Enem, deste ano, seria “desafios para a educação de surdos no Brasil”. Com tantas incertezas no cenário, é indicado não mais ignorar que o desenvolvimento de competências, como pensamento crítico, criatividade, resolução de problemas complexos e comunicação seja o passe de entrada para a arena do mundo contemporâneo. Com essas competências no cartão de visitas, não há “leão de chácara” que impeça alguém de entrar.